A comuna é portanto o pacto de se confrontar conjuntamente com o mundo. É contar com as suas próprias forças como fonte da sua liberdade. Não é uma entidade que se visa: é uma qualidade de ligação e uma forma de estar no mundo.
O confinamento e o estado de emergência impostos demonstraram mais uma vez a incapacidade do estado e do capitalismo de garantir um mínimo de condições de existência. A política que se esgota numa lógica de reivindicação ao estado – mesmo que feita para lá da esfera partidária – apenas prolonga, mantém e naturaliza esta miséria. Uma coisa são reivindicações com uma dimensão táctica para dar corpo a uma estratégia definida, outra coisa é fundar a política na reivindicação.
Afirmar estas duas ideias não é mais do que constatar que tal forma de fazer política já morreu há muito – e provavelmente nunca deveria ter chegado a existir. Afirmar isto não só já nem devia ser necessário, como já nem nos interessa propriamente. Aqui e ali poderemos sempre disputar algum espaço ou alguma medida pontual, mas o desastre em que vivemos e que a cada momento se intensifica já não permite que nos ocupemos com tais distrações. O estado e o capital não garantem nem condições de vida nem sequer a sobrevivência da maioria, e já são bem horas de largarmos essa esperança. Durante este farsa que oficializou o estado de exceção, a impotência dessa lógica política ficou ainda mais a nu: reivindicações, pronunciamentos e apelos às “autoridades responsáveis” foram caladas na origem por vergonha do ridículo desse gesto, ou dissolvidas no ar assim que emitidas.
Esta carta aberta dirige-se por isso às comunas existentes e por vir, fundadas numa política material e concreta, referente ao aqui e agora e às necessidades que identificamos e queremos ver satisfeitas. Se vemos que quem está perto de nós passa fome, organizemo-nos para arranjar comida e cozinhá-la – para todos. Se falta habitação, ocupemos. Se para determinada actividade precisamos de um espaço, arranjemos forma de encontrar e abrir um. Os meios para tal serão discutidos e organizados face a cada necessidade e caso concreto, sem passar por mediações ou respeitos formais pela propriedade ou qualquer instituição.
Dizem-nos que agora é altura de regressar à normalidade e reabrir a economia. Fogem do seu medo enorme de que se compreenda que a máquina rola sobre um vazio. Bastaram poucos meses em que o pessoal não compra produtos ou serviços ditos “não-essenciais” para vir ao de cima a maior crise económica em 100 anos. Não nos deixemos enganar: não foi o confinamento que despoletou a crise, esta já cá estava e foi apenas revelada e intensificada. Não há nenhuma normalidade a que desejamos voltar, sabemos que isso é apenas a gestão da catástrofe.
Se algo ficou deste período foi o colocar em prática de diversas formas de auto-organização. Cantinas solidárias, ocupações, hortas, brigadas de bairro, redes diversas de apoio mútuo. Quem quer que tenha estado presente nestas experiências não pode simplesmente desejar regressar à normalidade que nos ofereciam e é agora pintada como um oásis por atingir. Essa normalidade é a crise permanente a que o estado de emergência acrescentou mais uma camada de medo. Acentuadas e mais visíveis diversas desigualdades e privações, respondeu-se em conformidade – ensaiando formas de se organizar, em comum, potenciando autonomias e outras formas de relação. Queremos criar novas formas de vida e de autonomia sem a compressão destas relações de poder. Deem-lhe o nome que quiserem – a afirmação ideológica não é mais do que propaganda de um período que passou. Para já, comuna serve-nos. Este estar junto, enfrentar a vida e as necessidades em comum, uma determinada experiência que nos impede de desejar um regresso a algo que nos é hostil.
Tornou-se claro que estes ensaios de autonomia não tardaram a ser confrontados com novas formas de repressão. O dito monopólio da violência pelo estado funde-se cada vez mais com o efectivo uso de milícias privadas para colocar novamente a defesa da propriedade, do lucro e da ordem acima das necessidades e desejos comuns. Assim que surge a hipótese de uma nova vaga pandémica, o que se procura é a separação e a criação de bodes expiatórios. A divisão entre responsáveis que se sacrificam pelo bem da economia e os irresponsáveis que se querem reunir com amigos. É permitido reunir para trabalhar, depois disso tudo é excesso e abuso. Que a necessidade de agir perante uma epidemia não sirva para afastar ainda mais o que já estava estruralmente separado. Bem pelo contrário, que dessa necessidade se descubram novas redes, novos caminhos, novas práticas.
O desafio que enfrentamos é pegar no que se experimentou e construiu até agora e multiplicar tais formas de acção. As marcas de autonomia que ficaram deste momento e destas experiências terão agora que se densificar e intensificar. O desafio político está entre conseguir que tal aconteça, ou então aceitar mais um recuo social e político qualquer – onde o perigo do fascismo e de um capitalismo de miséria, aliados ao desastre ecológico, nos espera.
Identificar necessidades, abrir espaços, expropriar os expropriadores (senhorios, supermercados, gestores e capitalistas em geral), criar pactos em que passemos a enfrentar a vida em conjunto. O exemplo recente do que acontece nos EUA é significativo de tal abordagem – recusar mediações, começar insurreições, expropriar produtos para os distribuir livremente ou destruir, para lá de qualquer estatização ou monetarização. Criar espaços onde se possa, livremente, ir buscar o que se precisa.
Defesa, intensificação e expansão de outras relações, não mediadas pelo capital, para superar a mercantilização da vida e da existência.
Saudamos por isso as diversas comunas, tanto como resposta à crise como enquanto potenciação da nossa vida, de forma fazer recuar o deserto que habitamos. Identifiquemos necessidades, ocupemos, apropriemos, readaptemo-nos à situação, estejamos juntos.