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Continuidade da cantina solidária

Este texto nasce da urgência em reforçar o pedido de doações para que possamos dar continuidade à atividade da cantina solidária e serve igualmente como sequela do balanço publicado a 1 de maio sobre as dinâmicas da cantina. Nessa altura, contávamos com pouco mais de um mês de experiência cantineira, agora surfamos o quarto mês desta iniciativa e sentimos que é boa altura para fazer uma reflexão sobre esta atividade.

Durante os meses de março e abril servimos em média 119 refeições diárias, e por vezes sobrava comida, a qual conservávamos e distribuíamos no dia seguinte. Mesmo com o retomar da distribuição de refeições de outras instituições de solidariedade, após o período mais crítico de confinamento, a procura pelas refeições que providenciamos não parou de aumentar. Em maio esse valor subiu para 159 e em junho a média está já acima das 200 refeições confecionadas e oferecidas diariamente.

De duas pessoas a cozinhar, no começo da quarentena, passámos para três, e perto da 13h chegava um quarto elemento da equipa para ajudar a empratar e servir as refeições. Mas a vontade de ajudar não se esgotou e a comunidade diária de cozinheiras amadoras foi crescendo, o que nos levou a limitar os turnos da cantina solidária a seis pessoas por dia, mesmo que essa regra continue a ter exceções.

O aumento da quantidade de braços nas fileiras da cozinha foi causa e consequência do crescente número de pessoas que se têm aproximado e juntado a um “nós” que se foi tornando cada vez menos num grupo concreto de pessoas e, cada vez mais, numa ideia a ganhar forma. Para além das amigas de longa data, juntaram-se também aos turnos pessoas que só tiveram o primeiro contacto com o RDA69 durante a pandemia, muitas delas cá chegadas com o objetivo de procurar uma refeição para si.

Perante uma crise sócio-económica que está ainda no seu início, a cantina solidária do RDA69 nasceu para responder a um sentimento de urgência social (generalizado e materializado em várias “ações solidárias” que surgiram na altura da quarentena), e acabou por dar corpo à ideia de que a comunidade, unida e autónoma, é em si um caminho de resistência e subsistência. Foi o sentimento de entreajuda e não o de caridade que fundou a cantina, e foi neste sentimento de luta de todas e por todas que a mesma se robusteceu e cresceu. Porque, a par do número de refeições que fomos sendo capazes de disponibilizar, cresceram também os laços e a certeza de que a união entre as pessoas é mais do que uma soma de forças: desencadeia novas formas de resistir e construir, novos modos de acreditar.

Com o aumento natural e progressivo do número de pessoas a contribuir em cada turno, aquilo que era uma metodologia eficiente mas cansativa foi-se transformando noutra coisa. A firmeza e rigor dos movimentos otimizados foi dando origem a uma amálgama de formas de camaradagem “atrás do balcão”. Entre quem domina um jargão culinário e quem só fala a língua do querer ajudar, toda a gente se entende num pidgin mais ou menos verbal que enriquece toda a atividade com novas perspetivas (até porque não há uma forma “correta” de se fazer as coisas).

É frequente que alguém recém chegado, por exemplo, coloque do avesso as primeiras tampas nas embalagens de alumínio já empratadas, mas tais desatenções são rapidamente notadas e resolvidas por um coletivo atento. Cada qual está alerta para as necessidades e sensibilidades do grupo e de cada pessoa, e há um cuidado geral direcionado à confeção da refeição mais saborosa.

Travamos a mesma guerra contra o tempo, mas se nas primeiras semanas com limitação de três ou quatro pessoas dentro do RDA69 havia uma maior necessidade de disciplina, esta tem vindo a ser atualizada por aprendizagem mútua e um aprofundar de relações, o cliché de que a união faz a força. Passámos de um certo dirigismo culinário para um socialismo da socialização sem regras predefinidas em direção ao comunismo das novas formas de organização construídas em cima da amizade.

Até porque a cantina não tem como propósito único servir refeições. Desde cedo começámos por ter pontos de eletricidade para a rua para permitir que quem queira possa carregar o telemóvel. No início de maio começámos uma lavandaria comunitária, garantindo, desde então, duas máquinas de roupa diárias a quem se inscreve. Quando temos limões suficientes fazemos também uma limonada para servir à fila nos dias mais quentes.

Já conhecemos muitas das pessoas que vêm buscar comida, uma parte foi criando algum tipo de relação com este espaço e com uma qualquer forma de estar e socializar que possa vir daqui. Há quem nos diga que, mesmo quando só há opção vegetariana, preferem a nossa comida a qualquer alternativa na zona. Há quem nos conte que, antes de aparecerem no Regueirão dos Anjos, almoçam numa outra cantina e que a nossa refeição lhes serve de jantar.

Mas a amizade não se esgota nas pessoas que utilizam a rua ou nos vêm ajudar a cozinhar e servir as refeições. São algumas as associações amigas que nos encaminham comida em bom estado que não foi vendida, são também várias as pessoas que nos vêm entregar bens não perecíveis, as que nos trazem couves e batatas no regresso de visitar a família à terra, as que trazem o pão que não se vendeu na padaria por baixo de casa ou os bolos que sobraram do café da esquina, ou a gelataria local que nos oferece 10L de gelado semanais.

O espaço circundante à nossa garagem vai-se transformando ao longo do dia. De poucas pessoas que chegam ao princípio da manhã, por talvez preferirem a companhia que o Regueirão dos Anjos oferece a outras zonas da cidade, até ao aparecimento de uma fila de várias dezenas de pessoas que enchem a rua mais perto da 13h. Algumas das pessoas comem por ali, aproveitando os poucos lugares sentados improvisados num vão de escada ou no chão encostados à parede. As pessoas com mais fome ou que têm dependentes a quem levar comida ficam à espera até às 14h, onde quebramos o limite de uma refeição por pessoa para garantir que toda a gente tenha acesso a pelo menos uma refeição. Sendo a rua utilizada por várias pessoas, as sensibilidades sobre as condições de limpeza da mesma diferem. Uma das pessoas que vive na rua limpa-a com frequência durante a tarde, num misto de sentido de missão cumprida e queixume pela dificuldade em fazer algumas pessoas compreender a importância de respeitar e contribuir para a manutenção daquele espaço. O passeio também é regularmente visto como espaço para estender roupa, ou até, durante uns tempos, acolheu uma efémera loja livre.

Esta vivência comunitária tinha no fim da tarde uma expressão diferente. Às quintas e sextas feiras servimos cerveja para a rua, para transeuntes e amizades que sabem que esta é outra forma de contribuir para a manutenção do RDA69 e, consequentemente, para a atividade da cantina solidária. Este retomar tímido de atividades de convívio foi pensado também sob o prisma de que as contribuições que os sócios iam deixando, poderiam ser mais uma forma de financiamento. Mas os planos para estender estes fins de tarde para o fim de semana foram interrompidos, a par das quintas e sextas, pela recente intensificação das normas de controlo de população.

Até à data reunimos mais de 15.000€ em donativos e temos como custo das refeições, uma média, de 4500€/mês, sendo que este valor sobe consoante o aumento da quantidade de refeições oferecidas. Na corrida da gestão financeira, os donativos estiveram até às últimas semanas, consistentemente, cerca de 3 semanas à frente dos gastos. Com o decréscimo natural da quantidade de doações, estamos neste momento com uma margem financeira de cerca de uma semana. Mesmo a avistar uma enorme ravina à distância de uma semana, continuamos em direção ao horizonte que nos parece mais certo.

Vemos uma força a crescer à nossa volta, vemos condições a melhorar após muita luta e trabalho, e também vemos outras que nem por isso, como a precariedade que aumenta de dia para dia. Mas vemos definitivamente uma onda de esperança. E temos toda a motivação para continuarmos a deixar-nos levar por essa onda e garantir não apenas as refeições mas toda a interajuda na construção coletiva de um processo de valorização mútua. A quem puder contribuir financeiramente, o nosso IBAN é PT50 0035 0100 0003 1497 5304 1.

IBAN RDA69: PT50 0035 0100 0003 1497 5304 1