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Claire Fontaine e a Greve Humana no RDA69

Segunda, 1 Fevereiro, 18h
Os membros do colectivo artistíco Claire Fontaine vêm ao RDA69 discutir o âmbito do seu projecto, a partir do texto “Sem Título (Carta a A.) que aqui disponibilizamos em PDF.
https://www.dropbox.com/s/7q5fqgkaukw7oyi/Sem%20titulo%20carta%20a%20.doc?dl=0
Claire Fontaine é um colectivo artístico sediado em Paris, fundado em 2004. Roubando o seu nome a uma marca popular de cadernos escolares, Claire Fontaine declarou-se um “Artista Readymade” e começou a elaborar uma arte Neo-Conceptual que frequentemente se assemelha ao trabalho de outros. Utilizando materiais como néon, vídeo, escultura, pintura e texto, a sua prática pode ser descrita como uma contínua interrogação sobre a impotência política e a crise da singularidade que parecem hoje definir a arte contemporânea. Mas se o artista hoje é o equivalente subjectivo de um urinol ou de uma caixa Brillo – tão descolocado, tão privado de valor-de-uso e tão trocável quanto os produtos que produz – há sempre a possibilidade a que Claire Fontaine chama “Greve Humana.” Claire Fontaine utiliza a sua frescura e juventude para fazer de si próprio uma singularidade-qualquer e um terrorista existencial em busca de emancipação subjectiva.
Ao longo desta semana vários textos do colectivo irão sendo colocados num dossier temático dedicado a Claire Fontaine na revista Punkto: http://www.revistapunkto.com/
Várias versões dos originais podem ser encontradas no site do colectivo: http://www.clairefontaine.ws/
A seguir ao evento haverá jantar servido pelo colectivo do RDA69
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Sem Título (Carta a A.)

Paris, 22/3/2008

Caro A.

Prometi a mim própria várias vezes começar este exercício mas algo sempre me interrompia. E no entanto o que me interrompe está na origem da necessidade do exercício. Perdoarás então este texto cheio de fracturas, de obstáculos, pobre em soluções.

Estou de novo presa, desta vez intelectualmente, perante o mesmo rochedo que nos bloqueia a acção: precisamos de estruturas para transportar e para não desperdiçar forças, mas para as construir necessitaríamos da energia que as lutas desorganizadas do quotidiano nos roubam.

Necessitamos urgentemente de um fora, mesmo que seja mínimo, para apoiar as mãos enquanto nos tentamos levantar, juntos e sós, cada um por si.

Este fora é chamado, é invocado.

Como se numa sessão de espiritismo estudássemos as insurreições do passado para as trazer para perto do nosso vocabulário e dos nossos corpos, ainda que continuem na verdade distantes dos olhos e do coração.

Para escrever um texto que fala das relações entre arte e luta necessitaria de uma língua estrangeira dentro do própria linguagem, uma língua de saltimbancos que materialize a possibilidade de dançar numa corda bamba e de combater. Ao invés, tenho apenas os trapos de palavras gastas que tento coser à volta dos problemas.

Por exemplo, o problema de nem sequer conseguir pensar em atravessar a ponte que liga a arte e a vida, se ela alguma vez existiu, sem cair nos braços da lei.

E de não conseguir admitir este estado de coisas sem me deixar cair em cobardia ou depressão

Quando se nomeava os inimigos (capitalismo, imperialismo, patriarcado, globalização) uma alteridade binária e confortável era inventada.

Participámos para não participar. (Nas lutas e não no trabalho, nas dinâmicas militantes e não na sociedade de classes.) Queríamos ser um outro de modo a que aquilo que odiávamos se tornasse outro a nós.

A dessubjectivação foi um processo de distanciamento performativo e lógico.

Se não conseguíamos mudar os aspectos da realidade que mais nos magoavam, então iríamos transformar-nos em algo de inassimilável, escalando os moralismos, revelando o aspecto político da ilegalidade.

Tornámo-nos fora-da-lei, junkies, prostitutos, pervertidos, violentos – e inevitavelmente ladrões porque a propriedade privada e os afectos que ela conserva são a justificação de todas as outras opressões. A prisão foi uma etapa necessária porque foi sempre imposta e porque, de certo modo, também ela é uma separação do mundo clerical e medíocre do bem-estar do século XX.

E um problema surgia no decorrer deste devir.

O modo como os outros/excluídos se misturavam connosco, aqueles que politicamente não tinham escolhido a sua exclusão, mas a sofriam – porque eram privados até da escolha inicial de posicionamento. Este modo deixava muito a desejar.

Na verdade, não é que fosse pouco satisfatório; era na verdade intolerável, tanto para nós como para eles.

Totalmente insuficiente.

Porque os outros-excluídos continuavam a sentir-se os outros de alguém, mesmo se tinham o direito de o fazer pesar, sempre com a obrigação de carregar o peso do que nos dividia, que em vez de se tornar o motor da revolta se tornou um facto de atraso cinético. Quem sofre é menos produtivo, mesmo na subversão social, assim o diziam os movimentos, assim dizia a psiquiatria e os professores. Ámen.

Aí tocávamos o limite das nossas capacidades, do nosso livre-arbítrio alimentado por dogmas secretamente democráticos, que era o de não nos podermos mudar a nós próprios sem uma ruptura social que pudesse varrer o veneno do juízo e do cálculo, a doença da comparação idiota e brutal, esta polícia dos comportamentos.

Recusar tomar parte num processo revolucionário enquanto dever foi algo adquirido nos anos setenta. E no entanto o adiamento permanente da satisfação, num mundo que já permitia bem poucas ocasiões de prazer, tinha transformando os “militantes” em figuras ascéticas, incapazes de contaminar.

A escolha da margem enquanto local de onde prodigar empenho acabou por se tornar um dever simétrico ao que recusávamos, e talvez ainda mais insidioso. Por vezes a única reacção aos nossos gestos que atestava a sua natureza política era a repressão.

Era como se a sociedade fosse plastificada, e não só era infiltrável, mas mudava-nos mais do que mudávamos a ela.

Quem recusa a luta armada parte logo de uma posição derrotada no braço de ferro militar contra a sociedade. Quem quer que aceite a luta armada aceita estar só nesta luta, porque sabe que os seus camaradas não só não gostam do braço armado, mas têm-lhe horror.

E éramos, afastados do rio tumultuoso dos movimentos, nada senão presenças isoladas, prisioneiros da nossa identidade naúfraga, um episódio que se faz por esquecer.

Se não havia qualquer prazer a ter no local que escolhemos a culpa era sempre de um ou de outro, mas nunca do inimigo que nos perseguiu até estes túneis sociais asfixiante e nos condenou à endogamia.

Sobreviventes de um acidente não-declarado, veteranos de um Vietnam imaginário, cheios de histórias que não interessam a ninguém, oprimidos pela necessidade de nos adaptarmos ao presente para melhor o destruir, em coexistência forçada.

(perdoa-me por todas estas metáforas, e também pelas que não vou conseguir evitar mesmo mais tarde: Sei que fazer metáforas serve a expor a insuficiência da linguagem reconstruindo lendas quando há uma necessidade de lógicas. Fazer metáforas é estar em falta de exemplos concretos e de sentir um desconforto com a história. Ou talvez só um pudor burguês em dizer as coisas tal como elas são, nem sempre literárias, nem sempre linguísticas.)

A conclusão a que fomos forçados a chegar é que os privilégios não podem ser destruídos renunciando-os. A separação permanece e permanece ligada à própria decisão dessa renúncia, uma decisão nobre que é dada a poucos e em virtude dessa nobreza é reversível. Os privilegiados que se expõem ao perigo de lutar contra a sociedade, de viver nos seus interstícios, capitalizam esta experiência de estranhamento e podem, mais fortes e mais capazes, regressar ao local social de onde vieram.

Este facto, mais do que reforçar a crença num determinismo de classe (Ex: um burguês nunca lutará tão sinceramente quanto um proletário), fá-lo vacilar perigosamente.

Porque se é verdade que, na ausência de um processo revolucionário, ninguém pode mudar quer a si próprio quer à sociedade dessubjectivando-se à margem, então também é verdade que a alegria e os privilégios que se saboreia num mundo que continua capitalista são prazeres baseados na submissão e na pilhagem dos outros, prazeres separatórios e insociáveis. Prazeres bestiais em última análise, porquanto se possam pretender refinados.

A margem das lutas, com todos os seus defeitos, permanece um local melhor, uma fonte de criatividade, uma forma de luxo, um Eldorado perdido para quem regressou a casa mas não pode recuar no caminho sem se recusar.

Mas o problema é que se o objectivo é livrar-nos do burguês dentro de nós próprios, ou do pequeno-burguês para ser mais preciso, isto não pode ser feito mimetizando o contrário ou gesticulando a automutilação social. Não pode ser feito pensando na pequeno-burguesia enquanto uma audiência de espectadores distraídos, a converter ou escandalizar.

Em 1968 encerrou-se um ciclo de lutas juntamente com uma tempestade de subjectivações, que não apenas se tornaram argumentos para a venda de perfumes, roupa e mais, mas que nos deixaram, do ponto de vista de um ser humano e não apenas de um ser social, numa situação semelhante àquela em que se viu a abstração emergir na paisagem da história da arte.

O carácter prescritivo de cada teoria revolucionária – e nota que aqui economizo citações no sentido de manter o afinamento com a pobreza que descrevo – soa hoje patético e irrealizável porque está sempre atrasado em relação à miríade de outras necessidades efectivas imediatamente impostas na subjectividade pelas instruções comerciais. As empresas são as primeiras produtoras de mundos já possíveis, e depois das instruções para o seu uso agradável.

A ideia de uma política de meios sem fins que pudesse apontar à reabilitação da humanidade e à desqualificação da máquina política que digere a vida é ainda auroral. Talvez porque uma política que sugira um terreno de imanência pura de modo a elevar-se oculte o facto de este terreno estar colonizado por uma mercadoria sempre nova, que ocupa cada espaço onde as mãos possam pousar, continuamente varrendo o possível que lhe poderá servir de alavanca, rapidamente o deixando infestado de fetichismo e de desejos errados.

A doença económica e social já não é este exterior; já não é, por agora, uma zona energética que possa gerar lutas de modo a transformar os habitantes do planeta e a assegurar que o próprio planeta possa mudar. Saber isto dá-nos dor mas não força.

E nem os constrangimentos nem a dor fazem ainda mundos. Nas democracia liberais, como já o era nos regimes totalitários, saímos do registo lírico e trágico, saímos do expressionismo, estamos na abstracção económica. Qualquer imagem de extermínio é para o poder, e cedo será para nós, tão figurativa quanto um croma.

O Realismo sempre foi uma questão de tradução, uma construção feita de códigos, mas agora para acreditar na realidade necessitamos de imagens e palavras mais libertas do presente, porque o presente é feito de mercadorias e dos afectos que delas derivam.

Outros prrblemas bloqueiam-me e paralisam-me, e estes são ainda mais perigosos porque habitam a relação entre subversão e conhecimento. Se é fácil criticar o conceito de cultura acumulativa e mnemónica que informava a boa velha burguesa e a sua escola, é difícil compreender porque é que os movimentos políticos radicais não podem ir mais frequentemente pescar na margem da informação fragmentada e preciosa das vanguardas.

A vanguarda (requiescant in pace), o com seu cortejo habitual de museificações e encapsulações em jarros de vidro, é desde há 40 anos apenas sinónimo de mais-valia sofisticada.

Recordo ainda a grande desconfiança com que os autónomos olhavam para os pós-punks nos anos 90. “todos filhos da burguesia” diziam, como se a revolta desfuncionalizada, emancipada do activismo e colocada num espaço existencial, fosse um luxo inaceitável. Como se a rejeição do trabalho devesse sempre ser convertida em formas de luta produtiva de subversão e socialização, como se trabalhar para as condições de uma revolução fosse uma actividade tão linear e progressiva como a do trabalho assalariado, só que apontada em outra direcção…

A vanguarda permanece de facto carta morta, permanece um luxo não desejável porque o seu valor de uso é desconhecido. Como dizer que o único paradigma de transmissão de saber que nos é familiar é o da universidade, com o seu sistema fechado de poder e de compromissos, mas sobretudo com o seu acordo tácito de nunca fazer uma utilização efectiva dos conhecimentos transmitidos, criados e acumulados.

Grandes barricadas colocadas entre a arte e a vida, entre o saber e o viver, catedrais erigidas à glória da masturbação mental, as universidades ainda desajustadas do mercado que deveriam oferecer refúgio do inferno da mercadoria pelo menos por alguns anos aos jovens à procura de pesquisa, já não hospedam qualquer conflito entre os seus muros e aniquilam quem faz demasiadas perguntas.

As universidades após 68 revelaram-se aquilo que são: vectores de humilhação e reprodução social, casernas de polícia para os desejos de empenho político, tumbas de intelectuais militantes.

A transmissão, a discussão e o estudo deixaram assim, a partir de um certo ponto, de poder ser momentos socializantes, de reforço e não comerciais. Se estes sobreviveram nas faculdades conservaram pouco valor de troca e perderam qualquer valor de uso.

O saber resiste, estendido morto entre as páginas, mas não há ninguém para o animar e que lhe permita alcançar e transformar os corpos.

E dito isto caímos uma outra vez nas escadarias da história para regressar ao ponto de partida. É deste ponto que te escrevo ou tento escrever.

A certo ponto, no meio dos anos 80, recordo que se perdeu a noção de cultura. Não que se tenha perdido o sentido, mas perderam-se as suas instruções de uso. Foi esquecido então que a cultura não se produz nem se assimila com cada um fechado na sua própria fortaleza contemplativa, mas só animando relações sociais compatíveis com as verdades políticas que a animam. As culturas existem apenas no plural e activam-se não tanto estudando mas fazendo filhos, tendo amizades, cultivando amores que nos tornam capazes de compreender e agir. São os nossos comportamentos quotidianos recíprocos que já não nos colocam em condições de passar uma tarde a ler Lenin ou Foucault e permitem fazer algo de realmente e imediatamente subversivo . Se a cultura é a crítica permanente ao conceito de “património”, então porque regressa sempre a filiação, o estado, a imposição de cada vez que dela se fala? Mais do que uma pistola, desta vez é um arsenal nuclear que nos afronta.

Podes responder que vivemos um momento violento. E que a violência baixa o nível dos debates porque usurpa o posto da palavra, traz os corpos ao primeiro plano, com a sua fragilidade e desadequação, recorda quanto e como somos governados. Mas recorda-nos também que a abstracção não deveria mascarar nem a urgência dos desejos nem a abjecção do racismo, do machismo e da contínua ofensa à infância que cada dia se perpetua sobre todos nós.

A abstracção deveria permitir pensar mais longe , levando connosco todo o peso das nossas insuficiências mas sem qualquer vergonha, deveria lutar contra a força da gravidade e não fazer-nos escorregar. Isto talvez seja jogado – como os malabaristas sem experiência lançam as tochas, segundo uma lógica de sobrevivência mas sem rigor coreográfico – na arte contemporânea, sem nos queimarmos. Mas a arte não é um refúgio, não é uma posição, não é uma postura, é apenas um trabalho. Isto deve ser recordado e quando se diz “os artistas” deveríamos dizê-lo como dizemos “os médicos” ou “os construtores”

Um amigo meu dizia: o problema nunca é a repressão, o problema é o medo. O problema não é receber o golpe, porque quando somos atingidos somos suficientemente fortes para o suportar, o problema é viver toda a vida evitando o golpe, procurando fugir-lhe, mas frequentemente apanhando-o em cheio e perdendo não apenas a saúde mas também a dignidade.

 

Claire