Menu Fechar

Jantares da esplanada

quatro pessoas no rda a preparar legumes à volta de uma mesa

A pandemia constituiu-se tanto como uma interrupção como uma alteração das nossas vidas, num processo aliado a vários outros factores. Entre as dinâmicas que trouxe ao de cima, tornou mais claro e visível a crise em que nos encontramos e a necessidade de a enfrentar de uma forma que contrarie ou, pelo menos, não reproduza a mera gestão do colapso.

Desde o início do primeiro confinamento, o RDA acabou por desencadear e envolver-se com diversas actividades e relações que procuraram pôr em prática formas de apoio mútuo como resposta a privações materiais cada vez mais visíveis (alimentação, habitação, etc.), sem nunca deixar de considerar as relações e possibilidades que iam sendo formadas nesse processo. Numa primeira fase, afecta à cantina solidária, distribuímos uma média de 200 refeições por dia, sensivelmente durante 6 meses, ao mesmo tempo que íamos conhecendo novas realidades e estreitando novos laços no Regueirão. Com a actual Esplanada Comunitária, iniciada em Setembro de 2020, podemos ter diminuído o número médio de refeições diárias, mas assistimos a uma intensificação e diversificação das relações que estabelecemos e que fomos construindo no dia-a-dia.

Para lá de uma cozinha comunitária que tem o seu centro na confecção e partilha de almoços e na gestão do espaço, fomos observando uma diversidade de dinâmicas que contribuíram para uma aproximação cada vez maior entre o RDA e as pessoas que chegavam ao espaço. Da construção e re-construção de canteiros à realização de almoços temáticos, de um evento de spa que procurou alargar a esfera do cuidado à disponibilização de novos serviços (de mais máquinas de lavar diárias à toma de banhos, passando por outros momentos), de festas de aniversário ao simples passar a tarde a conversar em frente à garagem, assistimos a uma aproximação e apropriação do espaço do RDA numa lógica de uso livre que a nós próprios surpreendeu. No entanto, identificámos limites em tal processo, desde a nossa própria incapacidade e dificuldade de resposta (seja em termos de tempo, seja em termos materiais) à gestão de diversos conflitos quotidianos que foram surgindo, sem deixar de considerar a própria fronteira entre um “nós” e “eles” que não deixou de se manter em determinados momentos e em relação à qual existem certamente limites para o seu esbatimento.

Nessa tensão entre aproximação e fronteira, entre uma diluição cada vez maior dessa barreira que, apesar de tudo, não desapareceu, pensou-se numa atividade que pudesse envolver toda a gente da mesma forma, com objectivos comuns e para benefício da própria Esplanada. Para tal, criou-se um Grupo de Trabalho e fez-se uma reunião com o objectivo de realizar uma actividade semanal de Jantares que envolvesse toda a gente na sua gestão e execução. Desse Grupo de Trabalho e reunião surgiu o evento que agora apresentamos e teve a sua primeira edição no passado dia 23 de Junho, consistindo em jantares semanais confecionadas por todos os envolvidos na actividade e cujas receitas revertam para a própria actividade da Esplanada, com a sua finalidade a ser decida pelo Grupo entretanto criado.

Deste primeiro jantar retiramos não tanto o número de refeições confecionadas e servidas, mas acima de tudo o processo que o tornou possível. Da definição do menu atendendo aos recursos que tínhamos disponíveis e às vontades manifestas para o mesmo, da disponibilidade manifestada em cortar legumes e participar na arrumação e limpeza do espaço, do revezar de todos entre as diferentes tarefas que tínhamos em mão ao longo do turno. Em suma, todo um processo de realizar em comum o jantar, e posteriormente de o aproveitar.

Estando conscientes das possíveis dificuldades que tal gesto acarreta, assumimo-lo como uma actividade que tem como objectivo principal esbater as referidas fronteiras e contribuir para uma aproximação cada vez maior. Interessa-nos fazê-lo favorecendo uma aproximação que se reflita num cuidado e responsabilidade cada vez maiores relativamente ao espaço do RDA, que é cada vez mais tomado como seu, como uma infraestrutura para a qual mais pessoas dão uso de forma a suprimir as suas necessidades, ao mesmo tempo que se estabelecem relações e potencialidades tão importantes quanto necessárias para fazer face à crise que vivemos. No fundo, e reconhecendo que cada vez mais tarefas do dia-a-dia e da gestão da actividade são da responsabilidade de quem agora chega ao espaço (de parte da sua limpeza à recolha de alguns donativos), pretendemos com estes jantares esbater cada vez mais a tal fronteira entre um “nós” e um “eles”, num gesto em que cada um toma parte na decisão relativa ao espaço e à actividade.