Muitas pessoas têm perguntado como corre e como está organizada a actividade de cantina solidária que levámos a cabo no último mês e pouco. Paralelamente, os contributos que temos recebido não só excederam todas as nossas expectativas como se tornaram no único modo que temos para continuar esta actividade. Como tal, em jeito também de agradecimento, decidimos escrever este pequeno texto, explicando o processo de organização da cantina e a evolução que tem sofrido. Esperamos também que esta descrição possa ajudar outros a desenvolver projectos semelhantes e possa ajudar a construir um diálogo aberto entre todos os espaços e colectivos que neste momento organizam projectos semelhantes. A cantina tem servido entre uma média de 160/170 refeições por dia, sendo que o máximo até agora foi de 195. Este número foi crescendo nas primeiras semanas até estabilizar nessa média, que também se aproxima dos limites do que poderíamos logisticamente organizar. Quando sobra, a comida é guardada para o dia seguinte, sendo que até agora ainda não ficou nenhuma por entregar. A partir das 11h30 começa a ser formada uma fila à porta do RDA. Esta nasceu de forma espontânea e não fomos nós a organizar. Em geral corre bem e sem atropelos, toda a gente respeita o seu lugar. Quando recebemos algum donativo de alguma padaria ou pastelaria distribuímos um pouco às primeiras pessoas a chegar. Às 13h, quando começamos a distribuir comida, a fila já tem várias dezenas de metros e chega ao túnel do Regueirão dos Anjos, à direita da porta da garagem do Banco de Portugal. A iniciativa provocou uma certa mudança no método de organização que tínhamos. Na cantina regular do RDA os pratos eram servidos em pratos de loiça à medida que as pessoas os iam pedindo. Aqui tentamos ter pelo menos cerca de metade das refeições já embaladas quando as portas abrem, e em cerca de 20 minutos são distribuídas entre 50 e 70 embalagens.
A composição social da fila é bastante variada, tornando-se difícil fazer generalizações sobre todas as histórias. Há mais homens, mas bastante mulheres. Gente de várias idades. Há bastante pessoal sem-abrigo da zona, mas também bastante pessoal refugiado e imigrante. Alguns estudantes e jovens, Muita população empobrecida que vive no bairro. Não perguntamos as histórias, mas já começámos espontaneamente a estreitar laços com várias das pessoas. Algumas pedem para carregar o telemóvel (temos uma ficha quadrupla estendida até lá fora), outras para aquecer água para o chá, ou um pouco de sal ou de azeite. O modo de cozinhar também mudou bastante. Pensámos logo desde início fazer refeições variadas e nutritivas, mas fáceis de servir, de transportar e de cozinhar. Geralmente fazemos um panelão enorme de vegetais com algum tipo de proteína e de hidrato. Quando começámos a receber donativos resolvemos adicionar uma peça de fruta e um yogurt. Com o tempo tornou-se evidente que a) ninguém curte yogurt natural, e b) que a fruta teria de ser algo fácil de mastigar, nada de maçãs. Bastante pessoal diz-nos que a comida que distribuímos é a melhor da zona, que é quente e feita na hora com cuidado. Os cozinheiros chegam ao RDA pelas 10h. Até às 12h o trabalho é relativamente ligeiro, consistindo principalmente em cortar quantidades enormes de vegetais. À medida que se aproxima a hora da abertura o ritmo torna-se mas intenso, e quando começamos a distribuir as refeições fica tudo uma correria. É necessário servir os pratos, fechar as embalagens (que são aquelas de alumínio, redondas, muito usadas para frango no churrasco, cada cozinheiro já tem a sua técnica própria de as fechar mais depressa), montar o kit de colher de plástico, yogurt, fruta, guardanapo, e entregar as refeições. A maior parte das pessoas pede só uma refeição, mas são várias as que vêm buscar para outras também. Ao início, quem queria levar mais do que uma caixa trazia espontaneamente os cartões de cidadão dos destinatários, mas decidimos não era o nosso papel verificar esse tipo de coisa e presumir uma relação de confiança entre todos. Quando alguém pede para levar uma refeição extra para o jantar pedimos para esperar que a fila de dissolva, para ter a certeza que todos têm pelo menos almoço. Perto das 15h começa-se a limpar tudo e a deixar preparadas as coisas para o turno do dia seguinte, deixando leguminosas de molho, etc. Ao início os turnos eram de duas pessoas, depois passaram ser de três, agora são de quatro. São compostos essencialmente por pessoas que pertencem ao colectivo do RDA, mas é também frequente que amigos e pessoal próximo também ajude. Para muitos de nós é também a única hipótese de encontrar e ver amigos. Este horário intenso só é possível porque vários de nós estão desempregados, em layoff ou porque têm trabalhos com horários flexíveis. Em geral cada pessoa faz um turno por semana, mas há quem faça mais. Para lá dos turnos de cozinha há também um turno de compras, que tenta, na medida do possível, planificar as necessidades da semana. Também já aconteceu algumas pessoas próximas do colectivo decidirem “oferecer” a refeição desse dia, arcando com todos os custos e permitindo incluir carne (assegurando uma opção vegetariana, muito requisitada por comunidades imigrantes ou que não comem um ou outro tipo de carne). Quando percebemos que as maçãs não estavam a sair fizemos um bolo, e apenas a mais firme ética revolucionária impediu que fosse comido por nós bem antes das 13h. Fechada a garagem, o caminho para casa é sempre estranho. Sai-se do RDA bastante moído, mas ainda assim, mesmo depois de um mês, sempre impressionado com a própria capacidade colectiva e assombrado com a quantidade de gente que aparece. Sem turistas, estudantes, trabalhadores, erasmus e hipsters a Almirante Reis mostra uma cara diferente, e as diversas camadas de pobreza normalmente escondidas por entre o corropio do “bairro mais cool do mundo” tornam-se evidentes. As caras nas praças e nos portais passaram a ser familiares, por vezes acena-se um olá. Ante as filas enormes à porta de cada supermercado surge sempre o mesmo pensamento: “estes cabrões estão a fazer mais lucro do que nunca e não oferecem uma maçã que seja”. Tudo acaba por se tornar sempre mais evidente: mais do que ajudar os outros a comer sem ser pago seria importante arranjar modo de todos comermos sem pagar.